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O tempo do seu tempo

maio 28, 2021

24 horas. Eu não sei e tô com real preguiça de calcular tudo o que num mundo com crianças nascidas nos anos 80 poderia caber em um dia. Seria algo como um “Xou” da Xuxa completo incluindo a parte chata onde ela lia as cartas com o Moderninho berrando, um episódio repetido do Chaves e outro do Chapolin ali pela hora de ir pra escola, longas tardes alternadas entre Ciências e matemática ou português e estudos sociais onde ainda cabiam 30 minutos divididos entre 5 para o lanche e 25 para a o pique polícia e ladrão. Imagine que o intervalo era às 15h e que eu estudava em Bangu. Teve uma época que tentaram nos proibir de correr no recreio, pois voltávamos suados demais pra sala de aula.  Se a junta pedagógica soubesse o que viria no futuro jamais inventaria uma marmota dessa. Mas, isso é outro assunto. Vamos voltar ao tempo. Soava a sirene, tinham as brincadeiras finais até que os responsáveis ou os tios da Kombi viessem nos buscar. Chegava em casa e tinha lanche, teve uma época que tinha Chaves e Chapolin de novo, tinha dever de casa, tinha livro do bimestre pra prova de interpretação de texto, tinha carta ou telefonema para os amigos, tinham os pais chegando em casa, tinha janta e tinha a hora de ir dormir. 

Eu não faço ideia de como era a rotina dos meus pais. Mas, lembro das segundas-feiras na fila do banco Nacional. Segunda era folga da minha mãe. Salões de beleza não abriam às segundas, até inventarem os shoppings. Esse banco tinha uma logo azul e pelo que me lembro tinham uns desenhos que agora pensando me remetiam a guardas-chuvas, acho que pra dar a ideia lúdica de proteção. Ele foi fundado por uma galera política, e obviamente teve treta com contas fictícias e aí teve intervenção do banco central. Lembro do boné do Senna com a logo. Com a descoberta da fraude foi comprado pelo Unibanco, que foi comprado pelo Itaú e que hoje lucra bilhões. Eu divaguei de novo, né? Continua comigo que eu explico. Então, voltando ao tempo no banco. Minha mãe sempre trabalhou muito e as segundas, quando não tinha aula ou quando ela me deixava faltar à escola pra ficar com ela, era um dia de muita expectativa porque teoricamente seria o nosso dia. Mas tinha uma mulher loura no caixa e ela não deixava isso acontecer. Eu não lembro do rosto dela, não lembro das roupas. Mas lembro do corte de cabelo estilo Farrah Fawcett e o quão ele parecia ressecado e também lembro do relógio de parede e ambos conseguiam me causar ódio pela instituição. Tinham dias que o banco fechava e a gente continuava lá dentro. Na fila. As pessoas já se conheciam, já guardavam lugar, trocavam receita e acompanhavam o crescimento dos filhos. E mais um dia eu não tinha a minha mãe só pra mim. Pausa dramática.

Lembra quando eu falei da hora do Chaves? Uma frustração foi nunca ter conseguido assistir o episódio de Acapulco. Eu assistia o dia da véspera, da preparação para viagem com aquela cena clássica do Sr. Barriga dizendo pro Chaves que o levaria. No dia seguinte, sentava em frente à TV, que na época tínhamos tempo de falar sem abreviação: TE-LE-VI-SÃO, com a certeza de que o Silvio Santos em pessoa teria se encarregado de colocar os episódios na sequência. Isso obviamente nunca aconteceu. Eu só consegui assistir a esse episódio já adulta, casada e com a Netflix instalada. Como forma de manter a nostalgia, só assisti uma vez. Se você ainda estiver por aqui e assim como eu está na faixa dos quarenta deve lembrar da comoção criada em torno dos lançamentos dos clipes do Michael Jackson e da espera pelo lançamento de um novo álbum musical. Eu tinha dez anos e tudo o que mais queria era o Xuxa Seis. Minhas irmãs chegaram em casa me contando a grande aventura que foi conseguir um exemplar na extinta Casa Sendas. Não sei se fantasiaram a história pra eu dar valor, mas teve até tentativa de furto no carrinho alheio. Aliás, fui dar um Google pra confirmar o número do disco através da capa (ela com um chapéu de palha enorme) e revendo as músicas, essa foi a versão mais “filosófica” que me lembro da rainha dos baixinhos. Destaco “Quem sabe um dia” e “Não basta”. Era 91 e ela já estava falando de robôs e parentalidade positiva. Fala merda? À rodo! Agora e antes. Mas esquece isso por agora. 

Perdi o gancho e esse texto já se transformou em outra coisa, mas eu vou seguir e alguma hora reencontro a ideia central que era falar da aceleração que a tecnologia tem dado ao nosso tempo. 

Naquela época, digital só relógio e calculadora. Se o banco também fosse, meu tempo com  minha mãe teria sido diferente e as brincadeiras ganhariam outros cenários que não a variação entre tentar adivinhar onde os ponteiros estariam quando chegasse a nossa vez, ou contar quantas pessoas tinham na nossa frente, e ainda parar de inventar nomes para a tal operadora de caixa. Meu medo agora é que tudo é digital. Inclusive os recreios. Questão para a junta pedagógica: Criança ainda corre, sua e tem cecê? Criança sabe o que é esperar por um episódio? Não bastasse esse distanciamento do lúdico, os inventores da era Streaming  cismam em acelerar o nosso tempo. Começaram liberando temporadas de séries inteiras de uma só vez. Quando não, a indústria da informação do entretenimento te faz querer consumir logo ou esbarrará no spoiler em um post na rede social mais próxima. Produzem músicas curtas para o número de repeat ser maior,  o que logicamente melhora a posição no ranking das plataformas. Aliás, dificilmente se lança álbum inteiro, são pílulas ou singles desconexos que geralmente não contam uma história daquele momento do artista. Produzem refrão pensando nos 15 segundos que estarão como trilha para vídeos criados repetidamente com a mesma fórmula. A gente acompanha as notícias no tempo de um story e plantão da Globo nem assusta mais. Inventaram a função acelerar. É possível aumentar a velocidade e consumir quase tudo em 150bpm: filmes, aulas, podcasts e pasmem: conversas. Áudios no WhatsApp agora podem atingir a velocidade dois na dança do créu. Seria Adam Sandler em Click o protagonista da obra antiutópica dessa nova era? 

Para mim, que vivi da maneira como descrevi, é assustador perceber um mundo em alta rotação. Sinto que perdemos o prazer da espera, vão nos tirando aos poucos o direito à contemplação, logo perderemos também a capacidade de entender as nuances de tristeza ou alegria, não saberemos ler as expressões e não nos encantaremos com beleza da arte. Consegue se imaginar na mesa do bar e alguém te cutucando e pedindo pra falar mais rápido? Me pergunto o quão angustiante poderão ser as conversas sem prosa. Sou de uma outra época e dessa vez me sinto muito feliz em dizer que a minha era muito melhor.

Um comentário

  1. Concordo com vc amo a ludicidade da nossa época sou mega saudosista.



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