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O tempo do seu tempo

maio 28, 2021

24 horas. Eu não sei e tô com real preguiça de calcular tudo o que num mundo com crianças nascidas nos anos 80 poderia caber em um dia. Seria algo como um “Xou” da Xuxa completo incluindo a parte chata onde ela lia as cartas com o Moderninho berrando, um episódio repetido do Chaves e outro do Chapolin ali pela hora de ir pra escola, longas tardes alternadas entre Ciências e matemática ou português e estudos sociais onde ainda cabiam 30 minutos divididos entre 5 para o lanche e 25 para a o pique polícia e ladrão. Imagine que o intervalo era às 15h e que eu estudava em Bangu. Teve uma época que tentaram nos proibir de correr no recreio, pois voltávamos suados demais pra sala de aula.  Se a junta pedagógica soubesse o que viria no futuro jamais inventaria uma marmota dessa. Mas, isso é outro assunto. Vamos voltar ao tempo. Soava a sirene, tinham as brincadeiras finais até que os responsáveis ou os tios da Kombi viessem nos buscar. Chegava em casa e tinha lanche, teve uma época que tinha Chaves e Chapolin de novo, tinha dever de casa, tinha livro do bimestre pra prova de interpretação de texto, tinha carta ou telefonema para os amigos, tinham os pais chegando em casa, tinha janta e tinha a hora de ir dormir. 

Eu não faço ideia de como era a rotina dos meus pais. Mas, lembro das segundas-feiras na fila do banco Nacional. Segunda era folga da minha mãe. Salões de beleza não abriam às segundas, até inventarem os shoppings. Esse banco tinha uma logo azul e pelo que me lembro tinham uns desenhos que agora pensando me remetiam a guardas-chuvas, acho que pra dar a ideia lúdica de proteção. Ele foi fundado por uma galera política, e obviamente teve treta com contas fictícias e aí teve intervenção do banco central. Lembro do boné do Senna com a logo. Com a descoberta da fraude foi comprado pelo Unibanco, que foi comprado pelo Itaú e que hoje lucra bilhões. Eu divaguei de novo, né? Continua comigo que eu explico. Então, voltando ao tempo no banco. Minha mãe sempre trabalhou muito e as segundas, quando não tinha aula ou quando ela me deixava faltar à escola pra ficar com ela, era um dia de muita expectativa porque teoricamente seria o nosso dia. Mas tinha uma mulher loura no caixa e ela não deixava isso acontecer. Eu não lembro do rosto dela, não lembro das roupas. Mas lembro do corte de cabelo estilo Farrah Fawcett e o quão ele parecia ressecado e também lembro do relógio de parede e ambos conseguiam me causar ódio pela instituição. Tinham dias que o banco fechava e a gente continuava lá dentro. Na fila. As pessoas já se conheciam, já guardavam lugar, trocavam receita e acompanhavam o crescimento dos filhos. E mais um dia eu não tinha a minha mãe só pra mim. Pausa dramática.

Lembra quando eu falei da hora do Chaves? Uma frustração foi nunca ter conseguido assistir o episódio de Acapulco. Eu assistia o dia da véspera, da preparação para viagem com aquela cena clássica do Sr. Barriga dizendo pro Chaves que o levaria. No dia seguinte, sentava em frente à TV, que na época tínhamos tempo de falar sem abreviação: TE-LE-VI-SÃO, com a certeza de que o Silvio Santos em pessoa teria se encarregado de colocar os episódios na sequência. Isso obviamente nunca aconteceu. Eu só consegui assistir a esse episódio já adulta, casada e com a Netflix instalada. Como forma de manter a nostalgia, só assisti uma vez. Se você ainda estiver por aqui e assim como eu está na faixa dos quarenta deve lembrar da comoção criada em torno dos lançamentos dos clipes do Michael Jackson e da espera pelo lançamento de um novo álbum musical. Eu tinha dez anos e tudo o que mais queria era o Xuxa Seis. Minhas irmãs chegaram em casa me contando a grande aventura que foi conseguir um exemplar na extinta Casa Sendas. Não sei se fantasiaram a história pra eu dar valor, mas teve até tentativa de furto no carrinho alheio. Aliás, fui dar um Google pra confirmar o número do disco através da capa (ela com um chapéu de palha enorme) e revendo as músicas, essa foi a versão mais “filosófica” que me lembro da rainha dos baixinhos. Destaco “Quem sabe um dia” e “Não basta”. Era 91 e ela já estava falando de robôs e parentalidade positiva. Fala merda? À rodo! Agora e antes. Mas esquece isso por agora. 

Perdi o gancho e esse texto já se transformou em outra coisa, mas eu vou seguir e alguma hora reencontro a ideia central que era falar da aceleração que a tecnologia tem dado ao nosso tempo. 

Naquela época, digital só relógio e calculadora. Se o banco também fosse, meu tempo com  minha mãe teria sido diferente e as brincadeiras ganhariam outros cenários que não a variação entre tentar adivinhar onde os ponteiros estariam quando chegasse a nossa vez, ou contar quantas pessoas tinham na nossa frente, e ainda parar de inventar nomes para a tal operadora de caixa. Meu medo agora é que tudo é digital. Inclusive os recreios. Questão para a junta pedagógica: Criança ainda corre, sua e tem cecê? Criança sabe o que é esperar por um episódio? Não bastasse esse distanciamento do lúdico, os inventores da era Streaming  cismam em acelerar o nosso tempo. Começaram liberando temporadas de séries inteiras de uma só vez. Quando não, a indústria da informação do entretenimento te faz querer consumir logo ou esbarrará no spoiler em um post na rede social mais próxima. Produzem músicas curtas para o número de repeat ser maior,  o que logicamente melhora a posição no ranking das plataformas. Aliás, dificilmente se lança álbum inteiro, são pílulas ou singles desconexos que geralmente não contam uma história daquele momento do artista. Produzem refrão pensando nos 15 segundos que estarão como trilha para vídeos criados repetidamente com a mesma fórmula. A gente acompanha as notícias no tempo de um story e plantão da Globo nem assusta mais. Inventaram a função acelerar. É possível aumentar a velocidade e consumir quase tudo em 150bpm: filmes, aulas, podcasts e pasmem: conversas. Áudios no WhatsApp agora podem atingir a velocidade dois na dança do créu. Seria Adam Sandler em Click o protagonista da obra antiutópica dessa nova era? 

Para mim, que vivi da maneira como descrevi, é assustador perceber um mundo em alta rotação. Sinto que perdemos o prazer da espera, vão nos tirando aos poucos o direito à contemplação, logo perderemos também a capacidade de entender as nuances de tristeza ou alegria, não saberemos ler as expressões e não nos encantaremos com beleza da arte. Consegue se imaginar na mesa do bar e alguém te cutucando e pedindo pra falar mais rápido? Me pergunto o quão angustiante poderão ser as conversas sem prosa. Sou de uma outra época e dessa vez me sinto muito feliz em dizer que a minha era muito melhor.

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Condomínio fechado

novembro 8, 2020

Nascidos por volta de 1920 na mesma redondeza, Nicanor e Judite se aproximaram por afinidade e porque o destino quis assim. Afinal, o universo se encarregava de colocá-los nos mesmos lugares e nas mesmas horas nos diferentes espaços de uso comum do bairro de Irajá, no Rio de Janeiro. Um sempre encontrava o olhar do outro, fosse nas estações dos bondes, nas missas aos domingos ou nos blocos de carnaval. Em todas essas coincidências se falavam com os olhos. Às vezes tentavam esboçar um sorriso ou ameaçavam soltar um oi pra fingir normalidade, mas desistiam quando o outro desviava o olhar e se frustravam por mais uma vez não usarem os diálogos ensaiados. Antes de dormir, Judite revivia cada um dos não encontros e acreditava que a hora certa nunca chegaria.


Mas, como dizia sua mãe: Tudo tem seu tempo.


E ela estava certa, o tempo chegou em 1941, dia da inauguração do Cine Irajá. Ambos se perceberam olhando para o prédio art déco, quando Nicanor perguntou: Essa fachada…Não parece um rosto?


Meses depois se casaram por amor e com o tempo e o destino apoiando a decisão. Mais ou menos um ano adiante, nascia Jorginho, um bebê gorducho e saudável, com as bochechas rosadas e olhos de jabuticaba.


Jorginho se desenvolveu junto com o bairro, correndo pelo canteiros das obras dos conjuntos habitacionais. Já na adolescência percebia os avanços da industrialização e junto a favelização às margens da avenida Brasil e uma nova população que mudava completamente a cara da região. Ele gostava dessa movimentação e das histórias que essas pessoas traziam e foi no escritório da fábrica cimento branco que conheceu Sandra. Ele soube ali que queria a presença dela pra sempre.


Jorge adorava dizer que era nascido e criado em Irajá e que apresentaria tudo pra ela. E ele cumpriu o que prometeu. Mostrou o prédio com fachada de rosto onde seus pais se falaram pela primeira vez, as feiras do bairro, o Ceasa, o Boêmios, a igreja da matriz e até o cemitério. E isso se tornou uma tradição no relacionamento que logo virou casamento. Tudo que chegava de novo no bairro eles faziam uma incursão pra ver de perto toda a evolução do lugar que escolheram passar suas vidas.


Quando nasce um filho, nascem expectativas, sentimentos e projeções de um futuro que não pertence aos pais. E toda a frustação que vem junto não faz bem para ninguém. E é assim que começa a história do Sr. Jorge.
Ele sonhava em manter todas as suas gerações próximas do seu ninho e ficou difícil entender como alguém pode não querer morar num bairro que possui 5 supermercados num raio de poucos quilômetros e que tem transporte e acesso pra tudo quanto é lugar. Seu único filho com Sandra, era esse alguém. A casa ficou muito grande pra eles dois desde que Junior foi morar no Canadá. Sonhavam com o dia que teriam os netos correndo no quintal. Eles viraram adolescentes e isso nunca aconteceu fora de suas imaginações. O número de assaltos a casas aumentou e se mudaram para um condomínio.

Fizeram questão que fosse no térreo para manter a memória afetiva que tinham do antigo lar. E pra varanda levaram mudas de roseira e outras plantas. Posicionaram suas cadeiras frente à uma vista indevassada (desde que não virassem a cabeça pro lado) onde podiam acompanhar as pessoas em suas caminhadas e saídas para o trabalho.


Hoje, uma das cadeiras está vazia. Sobre a mesinha, um aparelho de celular de tecla, mas ele não toca. Sr. Jorge vive acompanhado de suas palavras cruzadas e sua latinha diária de Skol. Às vezes fala sozinho pra ter certeza de que não esqueceu o som da sua voz. Sente saudades daquela que foi pra sempre o amor da sua vida e procura não pensar em tudo que ficou do lado de fora da tela de proteção daquele apartamento no condomínio fechado.

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#FocoForçaeFé

outubro 19, 2020
Imagem: Uol

Matheus nasceu na periferia. Sua mãe, Cida, se desdobrou sozinha para criá-lo no caminho que ela sempre chamou de “do bem”. 

De onde ele vem, o tal “caminho do bem” significa ter um emprego de carteira assinada.

Cida foi mãe aos 14. A primeira e única transa. Dona Du, a matriarca, apesar de todo o amor não tinha mais horas em seu dia para sustentar mais uma boca. Ela nunca culpou a filha por engravidar. Seu sentimento ao ver a barriga crescer ainda era indefinido. Era um misto de sensações como tristeza e desapontamento com Deus, pois sabia que o futuro de Cida se espelharia no seu.

E assim, logo após o nascimento do Matheus, dona Du conseguiu pra Cida, um trabalho na casa da Bia, filha da sua patroa. Bia que aos 27, era muito bem casada com seu namorado de infância, tinha acabado de dar à luz a Francisco, e iria precisar de ajuda com essa nova rotina.

A chegada do Chico foi celebrada por toda a família. Com pais sem irmãos, fazia tempo que as famílias Orleans e Bragança não tinham uma criança por perto. Todo mês tinha mesa de bolo temática e depósito no fundo de investimentos criado especialmente pra ele. Bia e Edu não poderiam estar mais felizes.

Bia encerrou seu contrato com a agência de publicidade antes mesmo do nascimento do Chico. Seu foco agora era o maternar. Se inscreveu em cursos de parentalidade positiva e método Montessori. Fazia drenagem e pilates, teve acompanhamento nutricional durante toda a gestação. Tomava sol da manhã de topless para fortalecer seus mamilos e participava de roda de conversa sobre amamentação e alimentação BLW com outras gestantes e suas doulas. Teve o parto dos seus sonhos. Em casa, a meia luz, velas perfumadas e música relaxante tocando. Edu segurava suas mãos e acariciava seus cabelos, enquanto sua mãe massageava seus pés com óleos essenciais. Uma equipe com obstetra, pediatra, anestesista, duas enfermeiras, uma doula e uma ambulância com motorista e médico intensivista foi responsável pelo seu parto humanizado assistido. Chico nasceu as 18. Hora da Ave Maria. Um choro baixinho que logo foi silenciado pelo aconchego no corpo nu de sua mãe.

“O pai” do Matheus era o tipo que chegava e conquistava, comia e vazava. Popular na comunidade já tinha soltado nos rolés que a tinha comido na escada do Beco. Cida, abandonou a escola antes mesmo da menstruação atrasar. Sonhava em voltar, mas a barriga crescia junto com sua vergonha. O lanche da tarde deixou de existir, já que antes era merenda na escola. Passou sua gestação deitada no sofá assistindo desenho e comendo biscoito fofura. Sentiu as contrações sozinha em casa. Sem saber o que estava acontecendo chamou um mototáxi e foi só com o documento para o hospital. Lá a colocaram numa maca e ao tocá-la descobriram que estava em trabalho de parto. Ouvia vozes que diziam: “Essa garota tem quantos anos? Tá chamando a mãe, mas na hora de virar os olhos não pensou na vergonha que estava dando”. Sozinha, em suas preces só pedia que acabasse logo, que morresse ou que a criança nascesse. As dores duraram 12 longas horas. Até serem interrompidas por um choro alto e forte. Um menino. Cida desmaiou sem que pudesse reconhecer o rosto do seu filho. Na primeira hora depois, uma técnica de enfermagem a acordou mandando que levantasse o corpo pra “dar de mamar”. Cida não sabia como segurar aquele pretinho tão pequeno e lindo. Seus seios tinham dobrado de tamanho desde a última vez que os tinha visto. Não se podia dizer naquele momento, que ela amava seu filho. Ela só sentia dor e frio.

Matheus e Chico nunca brincaram juntos.

Matheus fez catecismo e crisma. Toda terça ia ao Terço dos Homens, mesmo sendo adolescente. Ajudava na missa aos domingos. 

Chico nunca foi batizado. Seus pais acreditavam que ele seria o responsável por buscar sua própria fé e não determinariam a religião do seu filho. Na adolescência acreditava em uma força superior de um Deus livre de religião.

Matheus estudou no CIEP da rua debaixo e depois fez curso eletrotécnico no colégio do estado.

Chico ironicamente, a vida inteirinha no São Bento.

Matheus terminou o colégio e ainda aos 17, conseguiu emprego de balconista na lojinha de ferragens. Não tinha carteira assinada, mas ia ganhar experiência. Quando chegou o primeiro salário, veio junto a conta de luz que ele passaria a pagar.

Chico mal finalizou o ensino médio e partiu para um intercâmbio. Seu foco era melhorar sua fluência. Um ano depois, seu sotaque já se misturava pelas ruas de Londres. Fez questão de trabalhar e se divida entre pubs e cafés. 

Matheus trabalhava de dia, cursinho preparatório a noite e aos sábados fazia “corre” no Ifood. Matheus pagou a última parcela do seu celular e agradeceu a Deus por aquela conquista. Cida, agora aos 31 se orgulhava do caminho percorrido pelo filho.

Chico era um bom menino. Amigo dos pais e dos pais dos seus amigos. Prestou pra Arquitetura. Preteriu a USP por não querer viver longe do mar. Edu não o deixou seguir pra UFRJ por julgar perigo no caminho. Pegou o diploma da PUC e acesso ao seu fundo de investimentos. Postou um textão de agradecimento a ele mesmo e finalizou com #FocoForçaeFé #QuemQuerCorreAtrás

Matheus acreditava que sua determinação o levaria ao canudo de Engenharia. Na quarta tentativa ele entrou. Postou nas redes #FuturoEngenheiro #FocoForçaeFé. No primeiro período, a alegria já ia sendo derrotada pelos olhares atravessados para o cotista e pelo professor que julgava seu atraso sem considerar tudo o que tinha passado para chegar até ali. Nunca se formou.

Cida, ainda trabalhando na casa da Bia e do Edu chorou escondido depois de ter ouvido dos seus patrões que quem quer de verdade não desiste. O choro foi por acreditar que a determinação do seu filho tinha falhado e que sua fé era insuficiente para chegar aos braços de Deus.

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Alice nas maravilhas dela

outubro 17, 2020
Imagem: Blog Artex

A semana tinha sido claustrofóbica dentro daquele home-office recém estruturado. Todo dia às dezoito, era quando Alice de fato conseguia colocar a mão na massa para trabalhar. Antes de tocarem os sinos da igreja de perto da sua casa, reuniões que aconteciam num encontro de corredor ou enquanto a máquina enchia o copinho de café, agora eram sequenciais e sem olho no olho.

Ela ama seu trabalho, mas uma sexta-feira é uma sexta-feira e naquela, o notebook só foi fechado por volta das vinte e duas.
Seu apartamento na zona sul do Rio, uma construção antiga com ladrilhos hidráulicos, taco e uma espécie de mini pátio com piso “de vermelhão” onde ela coleciona jiboias e samambaias choronas, uma rede e uma adega elétrica. “O recanto da guerreira”, como ela mesma diz.

O sábado amanheceu ensolarado, mas já eram quase onze. Tomou um café preto e se alimentou com duas torradas com manteiga derretida. Não trocou de roupa, deixou que o Spotify a surpreendesse com seu “algoritmo espertinho” e cantou alto enquanto cuidava de cada canto do seu mundo de 70m2.

O suor do exercício de passar pano, subir escada e se esticar para limpar onde seus braços não alcançam se misturou com a poeira acumulada e ela finalmente iria colocar seus planos do sábado à noite em prática.

Banho demorado e sem “eco culpa” deu a ela uma pele limpinha e esfoliada. O cheiro suave que se misturava ao vapor percorria toda a casa e ao vestir o roupão ela teve vontade de se abraçar e assim fez.

A toalha ainda estava enrolada na cabeça, a caixinha de som conectada ao bluetooth tocava Feelling Good (Nina Simone), enquanto ela dançava para ela mesma, sentindo e vivendo cada momento daquela voz. E vamos combinar? Que voz! O momento foi interrompido pelo toque do celular, olhou de longe e o nome “Sandro” aparecia na tela acima de uma bolinha vermelha e outra verde, mas ela optou por fazer nada. Mirou seu olhar para a estante de livros, enquanto esperava que ele desistisse.
Os dedos percorriam os títulos quando voltou a ouvir:
“It’s a new dawn / It’s a new day / It’s a new life / For me / And I’m feeling good”
Sua cabeça acompanhou a vibração instrumental mais forte enquanto demonstrava um sorriso sapeca de canto de boca.

Abriu o vinho e se sentiu muito tecnológica por ter um abridor elétrico que não exigia força ou técnica, era só encaixar e observar a mágica acontecer. Encheu a taça e a bancada, já que infelizmente a tecnologia ainda não resolvia seu jeito estabanado de ser. O acidente não interrompeu sua dança. Prática como boa aquariana, resolveu a situação com uma toalha de papel. Deitou-se na rede e o celular tocou novamente, mas dessa vez era áudio no “grupo das calcinhas”:
Áudio 1: Alice, Paula? Estão em casa? Falei com a Deise agora e tô indo pra lá. Levem vinho.
Áudio 2: Demorô! Tô levando dois e uns belisquetes.
Eu no lugar dela, culparia a situação, reclamaria que a pandemia ainda não tinha acabado e embora estivesse morrendo de saudade, preferia me preservar. Mas ela não é assim e simplesmente enviou a sua verdade: Zero vontade. Se cuidem!

Resolveu mudar de ambiente, soltou a toalha da cabeça e sentiu frio, catou sua manta molinha e se aconchegou no sofá. Faltavam vinte para as nove e, antes de abrir o livro, olhou mais uma vez para a capa e leu em voz alta “A audácia dessa mulher”, fez uma cara que parecia se reconhecer no título e foi interrompida pelo toque do telefone. Dessa vez, ela pensou: mas que porra! Era o Sandro de novo. Não se viam desde o começo do apocalipse covid. Resolveu deixar sua praticidade assumir o comando da situação e atendeu o telefone. Assumia que assim todo mundo curtiria os próximos minutos do sábado de boa. Deixou que ele falasse que estava com saudade, que desde a hora que foi presenteado com uma garrafa de Carménère pensava em dividir com ela e que sabia de um lugar maravilhoso com delivery. Posso ir aí? Embora ele fosse um tremendo de um gostoso, de esquerda e com papo delícia, aquele momento era dela. Sem nem pensar em qualquer desculpa: Hoje não.
Preciso interromper esse momento pra aplaudir essa mulher, não que a construção dessa personagem não esteja partindo da minha vontade, mas ela me conduziu até aqui. Eu teria aproveitado, teria cedido. Não consigo me ver vestida na personalidade da Alice sem sentir culpa. Mas, ela… ela é foda.

Alice não voltou a pensar em nenhuma das conversas naquela noite e nem nos outros dias. Não sentiu curiosidade de olhar o grupo para ver as fotos das calcinhas e não reviveu as palavras ditas por Sandro. Ela simplesmente foi em frente, e isso não tem nada a ver com frigidez. É exatamente o oposto.

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outubro 10, 2020

Um prata fosco toma conta de toda a base da luminária. Sua cúpula também é prata porém possui brilho e silhuetas de prédios. Eu sempre penso que erraram em sua fabricação pois a cidade fica de cabeça pra baixo. Sua iluminação amarelada dá um certo aconchego pro quarto, mas seu estilo pode ser considerado brega por muitos. Eu não ligo.

Uma imagem contendo no interior, cama, objeto, quarto

Descrição gerada automaticamente

Sr. Baixinho foi o cara mais sem jeito pra dar presente que conheci na vida. Ele sempre ficava sem graça em oferecer qualquer coisa. Quando era páscoa e nós já éramos quase adultas, ele comprava três caixas Garoto e dando um passo atrás com duas delas em uma das mãos e na outra mão a última que usava para coçar a cabeça, com o olhar sempre desconfiado nos chamava. Lá íamos as três com os braços esticados pra receber nossos chocolates, cada uma de nós o beijava à cabeça. Ou quando era nosso aniversário ou da mãe e durante a semana ele ensaiava até que perguntava “Vai fazer o que pra comer no aniversário?”, não importava qual era a resposta, ele sempre estava com o dinheiro separado. O último presente que ele comprou, foi uma TV de tela grande pra minha mãe. Ele viu uma de 50” num encarte e me mandou ir comprar. Quando cheguei na loja vi uma mais moderna de 47” e comprei. Foi o fim do mundo! Eu falei que era de 50”. Mas pai, essa é melhor. Como pode ser melhor se é menor? E quando foi entregar, tentou fazer surpresa, mas só conseguiu dizer: Era pra ser maior. Sinto hoje, que ele nunca achava que era o suficiente pra gente, e acho que ele não tinha noção de como esses momentos eram incríveis. Ele se importava. Ele sempre se importou e é essa lembrança que guardo em mim.

Uma vez, já estávamos com o apartamento comprado e ele levou pra casa uma luminária. Deixou em um cômodo que não usávamos muito e coçando a cabeça veio até mim e disse: Depois vê lá se acha que esse bagulho que eu trouxe serve pra sua casa. Um “cachaça” lá do bar estava vendendo e eu comprei. E eu sentindo sua simplicidade em falar, sabia que no fundo ele pensou em mim na mesma hora que o tal cliente entrou no bar com o objeto nas mãos.

Meu pai nunca (nunca mesmo) ia à lojas, shoppings ou saía do percurso “casa, trabalho, casa”. Só às segundas, quando ia ao banco e ao supermercado para abastecer a casa com todos os tipos de pão, incluindo o de milho, seu preferido e que eu nunca mais consegui comer. Então, era difícil termos algo escolhido por ele, sempre era uma de nós que operacionalizava pegar a grana com ele e comprar algo para as outras.

Hoje, já com alguns anos da sua ausência, essa luz amarelada que sai de uma cúpula prata brilhante através de uma cidade de ponta cabeça apoiada em um corpo fino e prata fosco, me faz lembrar dele e do momento que ganhei a sua presença aqui na minha casa, e me faz querer que ela dure pra sempre.  

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Tique…

setembro 19, 2020

Lembro de um tempo que corria devagarinho, quando cada segundo era marcado por um “tique” no relógio de parede. Esse tempo não tinha a intenção de ser cronometrado pois ele queria ser vivido. E era. Tinha toda a minha atenção e me retribuía com uma experiência bonita, leve, e na maioria das vezes, divertida.

O quintal tinha pra mim uma atmosfera de floresta, enquanto me balançava e voava alto sobre as margaridas podia ver os ninhos dos pássaros sendo construídos graveto a graveto. Tudo tinha um lugar para estar, até que vinha o vento e lentamente ia desprendendo as folhas secas das árvores e as conduzindo por uma leve dança no ar até que fossem entregues para repousar sobre a terra úmida e fresca, onde eram naturalmente absorvidas para o início de um novo ciclo.

A chuva vinha e eu gostava de sentir os pingos batendo no meu rosto.  Com alegria colocava a pontinha da lingua pra fora e esperava ser agraciada com seu gosto doce. Não era sempre, mas quando dava certo eu agradecia sorrindo. 

Eu via brotar as flores e delas nascerem bolinhas peludinhas e dia a dia às visitava na esperança que se transformassem em frutos. Acompanhava a transição de cores de um rosa esbranquiçado para um degradê com verde, depois dobravam de tamanho e atingiam um tom de rosa até que finalmente as encontrava macias e roxas. As amoras então explodiam em minha boca deixando um azedinho adocicado que nunca mais senti igual.

Era quase possível sentir o movimento da terra em volta do sol enquanto tentava decifrar as esculturas de nuvens feitas pelas mãos de Deus naquele imenso azul céu. 

De longe alguém gritava “comigo não tá!”, um bando devolvia em coro “Nem comigo!”. Suor e poeira da rua se impregnavam como tatuagem de chiclete na minha pele.  

Pelas manhãs eu ficava sozinha e era quando a magia acontecia. O sol entrava pela janela e dava brilho à poeira no ar, iluminando desfiles e teatro de bonecos. Nesse mesmo cômodo Agatha Christie, Pollyanna, Christiane F. e dezenas, talvez centenas, de outros nomes se revezavam para tomar conta de mim.

Ansiava pela chegada do verão, afinal dias depois teria a melhor data do ano, que eu pacientemente esperava para ganhar roupa nova e fazer algum pedido especial. Minha mãe acordava antes da gente e colocava o presente embaixo dos nossos braços. Os Cheiros de tinta fresca e cortina nova se misturavam com o vapor temperado que saía da cozinha da casa da minha vó. O chão de taco recebia cera, eu subia com os dois pés na enceradeira e ia onde o fio da tomada permitisse ou até que um adulto me flagrasse. Era delicioso perguntar “O Natal já é amanhã?”. 

Eu lembro desse tempo em câmera lenta onde a vitrola girava, a gente contava a posição da faixa favorita e soltava a agulha que com seu toque suave lia em braile e traduzia música no amplificador. Pegava o encarte e cantava junto. Quando o disco terminava a agulha se levantava sozinha para que a gente parasse de dançar e virasse o lado do vinil.

Tudo tinha uma dimensão diferente e cada coisa acontecia de cada vez. Esse tempo me permitia respirar. Depois de adulto a gente esquece como é encher o pulmão quando vê algo bonito e grandioso como uma borboleta azul.

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Sem máscaras

setembro 11, 2020
Viagem ao emaranhado de aleatoriedade que se passa na minha cabeça

9:02. Merda de alarme. Tenho que trocar esse barulho. Devia ter suspendido as aulas essa semana. Tudo é motivo pra matar o inglês. Levanta. Anda. Insight timer: meditação para foco. Redes sociais: Atualizações da @_pequenalo. Caralho! Me atraso em casa pra aula on-line. Precisava descansar. Nota mental: nunca mais tirar férias por apenas uma semana. A cabeça não desliga a ansiedade também não. Que caralha eu estava pensando quando fechei Paraty?
Coronga filho da puta. Tô com medo das pessoas, merda. Cinco meses usando trapos, como arruma mala? Me sinto escrota com esses “problemas” privilegiados. Talvez eu seja.
Terminei “Normal People”. Que roteiro bom! Tinha que ter assistido antes da tarefa 3. Vou reescrever. Um dia. Depois que entregar a 4 e a 5. Porra! A oficina tá acabando e mal aproveitei esse módulo cabeçudo. To ouvindo um podcast sobre viver de escrita. Será que rola? Todas têm em comum a fala sobre se expor. Fudeu então. Vou levar isso pra terapia.
Era pra ter dado uma geral na casa. Só arrumei o armário. Tô sem blusa.
Meu Deus! Quanto tempo que não me olho no espelho? Foda-se! Vou colocar botox. E preenchimento. E o que mais me oferecerem na consulta na quarta às quatro. Parcela? Não fez diferença mas eu sei que fez e amei esse não resultado. Espelho do elevador. Putaqueopariu mirei na hipster acertei na crente. Que máscara ruim. Ahhh toquei no corrimão. “Alquingel”.
41 Reais? Mas e o desconto do prédio? Ah era pra ser 49. Desculpe. Toma minhas calças, tomar no cu! Não precisa da minha via. Obrigada.
To uma consumista do caralho. Já me tiraram a vida social, me deixem beber. Alô, Zé delivery!
Foda-se, coronga! Vou pra Paraty com palpitação, mas vou.
Escrever no caminho com pensamentos aleatórios me fez viajar pro 638 destino João Alfredo. Ensino médio. Na época era segundo grau. Me sinto velha falando “na época”. Tu botou botox. Saiu de casa preocupada com o manjericão. Tá velha. Aceita.
Gosto da luz do sol batendo nos olhos do Felipe. Essa tarefa tá fluindo. Que merda de lugar que tu arrumou? Caralho é quebrada. Chegamos. Que lugar! Que pessoas! De Santa Luzia à Ciganos. Todos em arte. Gostei da energia. Tô no meio da mata. Puta merda, o repelente. Foca na vibe, no cheirinho do mato e no barulhinho da cachoeira.
Vamos comer aqui? Isso é síndrome da cabana. Não quero olhar lá fora. Não quero cruzar com multidão. Sim, vamos comer aqui. Uma garrafa de vinho. Branco.
Alex, Flávia e Naná (uma vira-lata gorda, linda e dócil) sabem receber bem as pessoas. Qual a história deles? Não é da minha conta. Só sei que fluiu e entre um prato e outro nos conectamos com eles e com suas histórias e fez sentido não ter vaga em Mauá.
Isso tudo funcionaria melhor sem máscaras.

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O mito da caverna e as redes sociais

junho 1, 2018

O Mito da Caverna foi escrito por Platão, e revela a relação estabelecida pelos conceitos de escuridão e ignorância, luz e conhecimento.

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As redes sociais nos deram voz e visibilidade. Passamos a ter opiniões formadas sobre tudo e a seguir quem compartilha conteúdo que concorda com o nosso pensamento. Em tempos de polarização de opiniões isso pode parecer tentador. Afinal, é possível criarmos uma grande rede de conhecimento onde todos pensam da mesma forma e não existem manifestações contrarias de gente que não sabe argumentar e parte para o ataque.

Mas é exatamente aí que mora o perigo. Hoje, as redes sociais possuem inteligência artificial que te empurram para a caverna. Ao distribuir “joinhas” apenas em posts que confirmam o que você já acredita ou seguir pessoas que possuem o mesmo pensamento que o seu, faz com que os robozinhos das redes entendam que somente este tipo de conteúdo te interessa. E então, passam a imprimir em sua timeline apenas aquilo que te agrada, mesmo que existam milhares de  visões diferentes sobre um mesmo tema.

Abandonei um pouco as redes sociais a principio por me irritar profundamente com posts contrários as minhas opiniões. E confesso, que muitas vezes me fiz valer da opção “deixar de seguir”. Me questionei se isso era emocionalmente saudável uma vez que blindaria meus pensamentos sobre o diferente e então lembrei das aulas de filosofia e do mito da caverna. E entendi que a minha verdade não pode ser absoluta. Posso e devo conviver com quem tem pensamentos diferentes do meu sem julgá-lo como ignorante ou adjetivo semelhante. Até porque cada um de nós tem uma  história, uma criação e sua própria caverna.

Depois, me mantive a distância por perceber o quanto o uso delas me roubava tempo e me colocava em situação de apenas consumir aquilo que os robozinhos mandavam. Optei por ser a dona do meu tempo e principalmente da curadoria do meu conhecimento. E com esse tempo que sobrou, consegui resgatar algo que amo fazer: escrever!

Este texto não tem o objetivo de ser um guia de auto-ajuda, mas faça esse exercício. Pense em algo que gosta muito de fazer, que seja simples, que dependa apenas de você mas que não costuma ter tempo para realizar. Afaste-se pelo menos duas semanas da caverna das redes sociais e veja a mágica acontecer.

Finalizo meu retorno ao blog propondo uma fuga da caverna. Para elevarmos o debate e sairmos de nossas verdades é necessário parar. Parar de impor nossos pensamentos a qualquer custo. Parar para ouvir o que o outro tem a dizer, tentar entender seus motivos e sim apresentar uma outra visão. Parar de olhar pela nossa ótica e praticar empatia. Parar de viver em nossas cavernas e ir pro lado de fora para entender quais são as nuances das verdadeiras verdades.

 

 

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Não me venha com mixaria

junho 17, 2013

10 centavos

Não meu amigo, não são apenas R$0,20

É a gasolina mais cara.

Os piores e mais caros carros do mundo.

As vias mais esburacadas com obras de maquiagem que não duram o tempo de uma chuva mais forte,

E sim, R$ 0,20 por viagem em ônibus lotados, com motoristas atuando em jornada dupla e sem o menor preparo emocional pra lidar com gente.

Não meu amigo, não são apenas R$0,20.

São os muitos Reais que você paga pelo seu plano de saúde, já que com a saúde pública que você também paga, você não pode contar.

São os 20, 40, 60 dias que você espera pra ser atendido na sua consulta pré-paga.

São os meses e anos de espera numa fila que não anda. Morre-se antes de que você seja ouvido.

E sim, R$ 0,20 meu e seu. Já são R$ 0,40

Não meu amigo, não são apenas R$ 0,20.

São as grades, as cercas, as câmeras e portaria 24 horas que você paga ao condomínio por uma segurança privada. Já que a segurança pública que você também paga não é competente.

É também o seguro do seu carro.

É também a escola do seu filho. Mas, se quisesse poderia entrar na fila pra pública que você também paga e se tivesse sorte conseguiria vaga pertinho de casa.

É também a previdência privada, pro seu futuro. Já que a que você também paga, não honrará o plano de saúde proporcional a sua idade.

É sim, R$ 0,20 que somados ao restante da passagem somam bilhões de Reais por ano e que em nada melhoram as condições de transporte no país.

Não são apenas R$ 0,20!

É a maior arrecadação de impostos do planeta.
São os bilhões destinados a eventos que em nada melhorarão as condições em que vivemos.
É a PEC 37.
É o salário minimo que não paga a passagem pro lazer.

Então meu amigo, não me venha com mixaria!

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Mãos atadas…

abril 30, 2012

 

Hoje, mais uma vez, assisti a violência contra a mulher. Ao contrário dela que gritava na tentativa frustrada de cessar o agressor, sofri calada.
Ela, ali no chão não tinha muito que perder e o escândalo era sua última cartada. Outros no balcão de um fétido boteco se quer ouviram seus gritos. Dois homens na mesma calçada a poucos metros de distância pareciam se perguntar o que ela tinha aprontado. Na minha cabeça e corpo, pude sentir a revolta e escolhi deixar de olhar para o lado, por medo. Medo dos meus impulsos e suas prováveis conseqüências. Ela, aparente moradora de rua e ainda assim mulher. Ele, covarde.
A pergunta que me fazia era diferente das dos outros dois. Era algo como: O que ele acha que está fazendo? Ele acha que alguma coisa será consertada após este absurdo?
Quantas vezes ainda me calarei por medo? Qual o estrago que a minha omissão permitirá?
Quantos ainda acreditam que elas mereçam passar por isso? Quantos simplesmente não ouvem ou ignoram cenas como esta por se tratar de pura normalidade?
O que me coloca em posição de cúmplice da covardia é que embora meus pensamentos fossem distintos dos demais, eu me calei e ela continuou sendo agredida e humilhada. Eu não conseguiria definir o que pode doer mais.