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Condomínio fechado

novembro 8, 2020

Nascidos por volta de 1920 na mesma redondeza, Nicanor e Judite se aproximaram por afinidade e porque o destino quis assim. Afinal, o universo se encarregava de colocá-los nos mesmos lugares e nas mesmas horas nos diferentes espaços de uso comum do bairro de Irajá, no Rio de Janeiro. Um sempre encontrava o olhar do outro, fosse nas estações dos bondes, nas missas aos domingos ou nos blocos de carnaval. Em todas essas coincidências se falavam com os olhos. Às vezes tentavam esboçar um sorriso ou ameaçavam soltar um oi pra fingir normalidade, mas desistiam quando o outro desviava o olhar e se frustravam por mais uma vez não usarem os diálogos ensaiados. Antes de dormir, Judite revivia cada um dos não encontros e acreditava que a hora certa nunca chegaria.


Mas, como dizia sua mãe: Tudo tem seu tempo.


E ela estava certa, o tempo chegou em 1941, dia da inauguração do Cine Irajá. Ambos se perceberam olhando para o prédio art déco, quando Nicanor perguntou: Essa fachada…Não parece um rosto?


Meses depois se casaram por amor e com o tempo e o destino apoiando a decisão. Mais ou menos um ano adiante, nascia Jorginho, um bebê gorducho e saudável, com as bochechas rosadas e olhos de jabuticaba.


Jorginho se desenvolveu junto com o bairro, correndo pelo canteiros das obras dos conjuntos habitacionais. Já na adolescência percebia os avanços da industrialização e junto a favelização às margens da avenida Brasil e uma nova população que mudava completamente a cara da região. Ele gostava dessa movimentação e das histórias que essas pessoas traziam e foi no escritório da fábrica cimento branco que conheceu Sandra. Ele soube ali que queria a presença dela pra sempre.


Jorge adorava dizer que era nascido e criado em Irajá e que apresentaria tudo pra ela. E ele cumpriu o que prometeu. Mostrou o prédio com fachada de rosto onde seus pais se falaram pela primeira vez, as feiras do bairro, o Ceasa, o Boêmios, a igreja da matriz e até o cemitério. E isso se tornou uma tradição no relacionamento que logo virou casamento. Tudo que chegava de novo no bairro eles faziam uma incursão pra ver de perto toda a evolução do lugar que escolheram passar suas vidas.


Quando nasce um filho, nascem expectativas, sentimentos e projeções de um futuro que não pertence aos pais. E toda a frustação que vem junto não faz bem para ninguém. E é assim que começa a história do Sr. Jorge.
Ele sonhava em manter todas as suas gerações próximas do seu ninho e ficou difícil entender como alguém pode não querer morar num bairro que possui 5 supermercados num raio de poucos quilômetros e que tem transporte e acesso pra tudo quanto é lugar. Seu único filho com Sandra, era esse alguém. A casa ficou muito grande pra eles dois desde que Junior foi morar no Canadá. Sonhavam com o dia que teriam os netos correndo no quintal. Eles viraram adolescentes e isso nunca aconteceu fora de suas imaginações. O número de assaltos a casas aumentou e se mudaram para um condomínio.

Fizeram questão que fosse no térreo para manter a memória afetiva que tinham do antigo lar. E pra varanda levaram mudas de roseira e outras plantas. Posicionaram suas cadeiras frente à uma vista indevassada (desde que não virassem a cabeça pro lado) onde podiam acompanhar as pessoas em suas caminhadas e saídas para o trabalho.


Hoje, uma das cadeiras está vazia. Sobre a mesinha, um aparelho de celular de tecla, mas ele não toca. Sr. Jorge vive acompanhado de suas palavras cruzadas e sua latinha diária de Skol. Às vezes fala sozinho pra ter certeza de que não esqueceu o som da sua voz. Sente saudades daquela que foi pra sempre o amor da sua vida e procura não pensar em tudo que ficou do lado de fora da tela de proteção daquele apartamento no condomínio fechado.